Encontrado em mim

Perguntou-me ela há dias: “Que canção te define melhor?”

Na altura não lhe soube responder, é sempre difícil escolher entre amores profundos. Acho que normalmente as canções de que gostamos mais são aquelas que nos dizem algo sobre nós, sobre momentos, sobre sentimentos, e quando a vida avança (já não estou a ir para novo…) as candidatas a integrar o leque de escolhidas vão-se acumulando (ao ritmo louco de, sei lá, uma ou duas por década de vida) e algumas perduram enquanto outras se desvanecem (algo que acontece às que se associam a alguém que passou pela nossa vida).

Esta é das permanentes, por tudo, porque vem de muito lá atrás, porque nunca ninguém se lhe colou, porque me define sentimentalmente.

Japan – Nightporter

Até sempre e obrigado, Manoel.

Não, não gostei de tudo o que realizou, não, não vi tudo o que realizou.

Mas gostei de bastantes e cresci a amar alguns, em particular este que aqui está em baixo completo para quem tiver uma hora e tal para ver cinema.

Lá fora vivia-se a guerra, por cá a guerra do Manoel era no Porto e era outra.

O Lobo e a Imensa Minoria

Cumpriram-se, no passado sábado, cinco anos desde que uma das vozes mais emblemáticas da rádio portuguesa nos deixou.

António Sérgio e Ana Cristina foram sempre dois nomes indissociáveis do meu imaginário auditivo adolescente (e não tão adolescente) e responsáveis pelo ecletismo que pauta os meus gostos culturais.

No sábado, o Sérgio teve a homenagem merecida, aquando da apresentação do seu documentário “Uivo” em simultâneo com o lançamento do livro “O Uivo da Matilha”.

O Uivo da Matilha

Em tempos (2010) a Ana Cristina pedira-me um texto para um possível livro sobre o Sérgio, assim fiz e confesso pensei que o mesmo nunca passasse do impossível, mas afinal as estrelas alinharam-se e o livro saiu. A minha vida mudou de lá para cá, o sentimento de respeito e gratidão a ambos, esse permanece o mesmo.

O orgulho de ficar de certa forma ligado à memória do Mestre não é mensurável, é inexplicável.

O texto que lá está fica aqui:

Retrato a preto e cinza

Barreiro, algures na década de 80. Que algures! Em cheio no ano de 81! Curtis morrera no ano anterior e eu nem sabia quem Curtis fora, ainda…  Afinal de contas era um miúdo de 13 anos que ainda andava fascinado com outras músicas, com o nascimento do chamado “Rock Português” e cujo hino ainda era o “I Don’t Like Mondays” e o “Another Brick In The Wall” (sim, podia ser pior, mas vamos deixar o Cliff Richards e o “We Don’t Talk Anymore” na gaveta, ok?).

De repente descobrimos uma voz que não se limitava a dar-nos música, mas que nos dava “outra” música e que estabelecia ligações entre as bandas, que nos dizia que afinal o McCulloch, o Cope e o Wylie tinham começado juntos para depois nos maravilharem nos projectos em que o seu ego cabia (foi bom negócio, três bandas em vez de uma com três loucos…). A voz, a voz era a do António Sérgio, era cavernosa mas acolhedora, e arrastava-nos para os meandros da música que ele tão bem conhecia e adorava.

A nós, putos do Barreiro, fazia-nos correr para casa para apanhar o “Som da Frente” e anotar (nem sempre com sucesso mas sempre com um grande grau de inventividade) os nomes das bandas e das músicas que mais tarde ou mais cedo acabavam na sua/nossa Lista Rebelde.

O número de bandas, de génios musicais, de pérolas, que o Sérgio nos revelou, é fantástico e embora houvesse outros “educadores” à solta na cena radialista dos 80s (Aníbal Cabrita e Ricardo Saló, nas suas “Noites de Luar”, o Francisco Amaral no “Íntima Fracção”, o Manuel Falcão com o “Colar de Pérolas” e mais tarde o Amílcar Fidélis com a sua “Ilha do Tesouro”) o trabalho do António marcava os nossos gostos, e marcava de uma forma que poucos seriam capazes de o fazer: com um ecletismo extremo. Afinal foi o António que nos ensinou a gostar de Teardrop Explodes e de Motorhead, de Cure e de Virginia Astley, de David Sylvian e de Fall, de Prefab Sprout e de Gun Club, de Cult e de Pere Ubu, de Cabaret Voltaire e de Echo and the Bunnymen, de Bauhaus e de Violent Femmes, de Smiths e Jesus & Mary Chain, de Triffids e Birthday Party, de Pogues e Housemartins, de Joy Division e de R.E.M…

Ensinou-nos a cultivar a diversidade e a expressarmos aquilo que éramos através daquilo que ouviamos, a sermos singulares, mesmo quando vestíamos de um cinzento igual ao que críamos ser a cor de Manchester e nos assemelhávamos a uma tribo de gosto que nos orgulhávamos de não serem “mainstream” porque éramos diferentes, porque atrás da música vinha a leitura, e atrás da leitura, o cinema, e o cinema trazia-nos a música e o circulo fechava-se, abrindo-nos o Mundo.

Foi graças ao António, e ao Francisco Amaral, que um dia fiz rádio e tentei humildemente seguir-lhes os passos e também que um dia eu e o Miguel tivemos a nossa coroa de glória: estrear o “Baby the Stars Shine Bright” dos Everything But The Girl e depois levar o disco a Lisboa para ser “estreado nacionalmente” pelo António. Nesse dia, o Som da Frente foi ainda um pouco mais nosso do que o habitual, e inchámos de orgulho.

Lembro-me de aos 19 anos ter deixado o Barreiro para vir trabalhar para Aveiro e trazer comigo dois sacos desportivos, um contendo toda a minha roupa, o outro contendo toda a minha vida: 190 cassetes gravadas religiosamente ao longo de uma adolescência que creio feliz e que ainda hoje guardo e às quais retorno pontualmente para recordar “aquele” disco que nunca cheguei a encontrar em CD ou para provar que “Sim, o gravador Denon do pai do Miguel era excelente e aquelas Maxell e TDK ainda hoje soam como novas…”.

Lembro-me de aos 34 anos mudar de vida e levar apenas aquilo que me era essencial, a roupa, os meus livros e as minhas cassetes e discos, porque para viver não precisava de mais nada, o resto logo se via…

O mais duro era saber que a X-FM existia e que nós estávamos privados dela por não estarmos em Lisboa ou no Porto, e justificar porque é que havia uma memória do rádio que nunca apanhava nada em Aveiro, mas que despertava quando subia ou descia no país… Depois a X acabou e por causa disso descobri o IRC e por ele a mulher com quem viria a casar, e que comigo falou a primeira vez por causa da música, sim, por causa do David Sylvian com que o António me fascinara aquando da saída do “Brilliant Trees” e que me levou a ir expressamente a Lisboa comprar o “Gone To Earth” para ouvir paisagens que nunca mais me abandonaram…

Perdi o António durante mais de uma década, devido às interrupções dele e ao meu afastamento das capitais culturais do país. Reganhei-o por alguns meses via Radar e uma ligação internet decente para poder voltar a ouvi-lo, apenas para o perder, incrédulo, em 2009, com um murro na boca do estômago que me despertou mais uma vez para a forma como as coisas às vezes acabam de repente e sem termos tempo de gozar os louros do que fizemos.

António,
pelo Tom Waits e a Mathilde Santing, pelo David Sylvian e o Robert Wyatt, pelos Echo e os New Order, pelos Xutos e os This Mortal Coil, pelos Mão Morta e os Dream Syndicate, pelo Nick Cave e os Cocteau Twins, pela Laurie Anderson e o Lou Reed, pelos Dead Can Dance e os Gene Loves Jezebel, pelos Was Not Was e os Chameleons, pelos Sound e os Young Marble Giants, pelos Working Week e os Tuxedomoon, por mim, por nós, pelo Cleto, pelo Vitor, pela Joana, pelo Margalha, pelo Esteves e o Didelet, pela Ana e pelo Miguel…

OBRIGADO!

Beware of Mr. Baker

Há músicos e Músicos.

Há alguns que se tornam míticos. Ginger Baker é um desses casos.

Louco, irrascível, genial.

Beware of Mr. Baker é um documentário que exprime uma reverência extrema pelo génio, mas não esconde nunca o homem por trás, em toda a sua loucura e toda a sua fraqueza, dando-nos um retrato que julgo honesto de um dos maiores bateristas do nosso tempo.

Conta com testemunhos de imensas pessoas que com ele privaram e privam e mostra-nos alguém que embora por vezes odiado ou desprezado, é sempre reverenciado pelos seus pares.

Mi casa es su casa. Deleitem-se.

A ver, e fundamentalmente, a Ouvir.